quinta-feira, 15 de março de 2018

Recebi uma carta.



Leïlah,
Hoje, recebi as notícias. O palácio segue se retorcendo em ruínas. Poetas morrendo e fogo cruzado nas esquinas. Rio, São Paulo, caminhões assaltados de miséria. É fácil se entorpecer no celular o dia inteiro quando a cidade nega trânsito, comida, saúde e festa. Sei que você já não aguenta mais esconder o pus, mas entenda, estão todos ocupados sendo quadros perfeitos nesta imensa galeria. Expostos à visitação. Umas mais breves, outras mais longas.
Exposições permanentes rendem menos público, você sabe, já trabalhou com isso. E o que os visitantes fazem diante de vocês? Tiram selfies, cospem chiclete, ruminam críticas virulentas, aplaudem um aplauso oco típico dos anestesiados. Amanhã, tem outra treta, Tieta, não se afobe que nenhum comentário é pra já. As ideias estas são! Pra ontem.
Aliás, há quanto tempo você já não sente saudade de ontem? Não estou falando de 1993 ou de 2007, estou falando de ontem, mesmo. Pudera. O dia de ontem o que teve? Meme, compartilhamento, print, GIF, boomerang (quando vão entender que não se faz boomerang de algo que não se movimenta?), feed? Ninguém se lembra da vida passada desse jeito. Esse caldo viscoso todo não forma memória. Os dias passam em branco em rede.
O maior trabalho da rede é extinguir a memória, posso garantir. Tem uma porção de gente detonando essa bomba dentro da universidade, sabia? Um presente contínuo é o que eles querem (e tome carpe diem). Sem vivência não há memória. Alguém se lembra do que disse naquele chat de ontem? Não lembra nem pra quem falou.
A vida não é um acessório do celular.
Há gente saindo do Facebook aos borbotões, há gente saindo do planeta (exit planet dust, aquele nosso disco do final dos anos 90, lembra?). Ninguém nunca imaginou nas pistas daquelas discotecas fervendo alucinações em verde-limão e laranja radioativo que a aridez doeria tanto.
Agora já é pós-tudo, minha tiny dancer!
Suas pernas naquele tempo já sabiam. Já checou seu nível de B-12, por falar nisso?
Li atentamente seu relato sobre o sonho. Não acredito que você persiste nessa de aprovação alheia. Deixe-se ser ridícula, você já sabe que nobres companhias tem nessa elaborada arte, hahaha. Distraídos venceremos continuo te dizendo. Mas sei que com tantas vozes dissonantes num coro funesto de desesperança e pobreza (matéria mesmo, a gente sabe),
e tantas visitações às galerias, não dá pra se distrair. Por isso, em verdade te digo, desligue a porra do celular e vá viver! Ninguém nunca esteve tão interessado assim no outro. Um mundo em rede é um mundo desabitado. Esta sequência de monólogos não forma uma única história que preste. Você vai discordar, eu sei, porque tem essa alma de pesquisadora e costureira de retalhos, mas eu vou contrapor que você quer ser inteira, que essa é sua maior ambição e que cada pedacinho que recolheu ao longo do caminho foi para formar essa Grande Obra com que tanto devaneia.
Que não vai adiantar pica nenhuma, você sabe. Você só fica feliz na praia, minha querida.
Mas vá lá, continua na sua senda. Só que agora é tempo de silenciar e logo este primeiro trimestre de 2018 se dissipará. E mal piscará, será hora de lançar tudo isso que tá na sua mão feito pedra já.
O primeiro trimestre de 2018 vai passar. Rápido. Raio. Como todos os anos desde 2013. Mas já me preocupa muito a pressa de vocês de viver algo bom. Quantos anos de atropelo os pés aguentam?
Já vou te avisar que culpar os anos também é de uma estupidez que vou te contar. Coisa de rede social, mesmo. Estreiteza de raciocínio coletivo. Ano não tem culpa de nada! Nada! Vocês têm culpa. A rede tem culpa. A rede inventou estes anos miseráveis. Esta pressa. Tudo sempre foi assim, mas agora vocês estão munidos de lupas, martelos e velocímetros. Arrumem outros objetos. Talvez funcione. Ponham o mundo pra rodar numa agulha. Amolem as facas (fé). Vocês vão continuar sendo os mesmos? Então que venha 2028 com mais uma narrativa insuportável. Outra vez. Eu insisto que o mundo em rede é uma mentira. É melhor que cada um seja uma árvore e se ramifique dentro da sua floresta.
Agora, as inquisições sempre existiram. Nada de novo.
Ok, ok, têm coisas boas, sempre tem, mas não urge discuti-las. Elas sobrevivem e melhor em doses menos estrondosas, ainda que o preço seja um mundo que gire menos neuroticamente rápido. Não é isso de que vocês tanto reclamam, aliás? Mais devagar só com menos hashtag e trend topic (que coisa mais desgraçada, você sabe que nunca vai ter audiência larga sem fazer o jogo da TT), maninha. Não tem saída. Aliás, tem, mas vai ser preciso sacrificar o vício de se acorrentar ao próximo achismo. O vício de correr por sobre as telas, estas pistas de atletismo em chamas. E deixar se perder de novo no labirinto dos argumentos reais e concretos. Das leituras longas e pausadas. Dos pensamentos em câmera lenta. Desfragmentar, discorrer, reconectar.
É quase que inventar a liberdade, igualdade e fraternidade do nosso século (é ou não é nosso?), pode achar graça. Uma graça imensa.
Vocês estão compactados. Descomprime e libera!
Há cidades destruídas esperando por vocês.
Com afeto,
sua amiga.

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