segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Viver mata.


Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.

Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.


Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.


Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.


Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.


Morre lentamente quem não viaja quem não lê quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.


Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.


Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.


Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.


Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.


Martha Medeiros

4 comentários:

  1. Tamara Marques (13h)sábado, abril 11, 2015

    "Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos."

    A minha contradição pessoal é sempre correr atrás de novas emoções, deixar que toquem em mim, mas nada mais que isso. Sem abraços.
    Gosto das emoções fortes. Mas gosto delas passadas em um medidor, dosadas em pílulas que não condizem com a própria essência da identidade delas.
    Hoje em dia gosto de colocar cada vez mais a minha mão no fogo. Arriscando aquela tal de "vida tranquila" e dando a cara à tapa, assumindo ser exatamente do jeito que eu sou, mesmo sem saber o que é isso direito.
    Mas, com certeza, ainda falta muito "fogo" para eu viver plenamente até que não viva mais.
    Quem sabe, um dia, até não tomo coragem e experimento plenamente essa coisa de paixão?

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  2. Boa reflexão. Ver graça na vida é essencial. Tantas vezes esperamos que o fim de semana chegue logo,ou que o dia corra para chegarmos em casa e descansarmos. À frase "lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar,"- acrescento - exige força de vontade, crença de que valerá a pena, de que a vida merece ser vivida, não apenas percorrida.

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