Por Muniz Sodré em 02/09/2014 na edição 814 do Observatório da Imprensa
Ao lado dos amantes, dos ambiciosos e dos observadores, Taine classificava os imbecis como um tipo básico da vida social. E ainda: para ele, estes últimos eram os mais felizes. Não é uma opinião desprezível, considerando-se o peso que teve o historiador e crítico Hyppolite Adolphe Taine (1828-1893) na vida intelectual europeia da segunda metade do século 19, apesar de suas teses (hoje, desmoralizadas) quanto ao determinismo do clima, do meio natural e do momento sobre o fenômeno humano. Ele morou algum tempo no Rio de Janeiro e teve uma influência considerável sobre o pensamento racista brasileiro em ascensão.
No que diz respeito à diversidade humana, o próprio Taine tinha o seu lado imbecil, mas não era evidentemente um idiota, já que se pode estabelecer alguma diferença entre idiotia e imbecilidade, reservando-se à última o beneplácito etimológico (imbecillis, em latim) do significado de “ingênuo” além dos demais, onde se inclui também “louco”. Tanto assim que se pode levar em consideração a sua opinião sobre a felicidade dos imbecis.
Um exemplo contemporâneo pode ser buscado na internet com suas redes “sociais”, onde há de tudo, mas de tudo mesmo, sobre a radical estranheza do animal humano – do gratificante ao horripilante. Este último adjetivo contempla principalmente o idiota, que a psiquiatria inseria na “tríade oligofrênica” – bem antes da prudência “politicamente correta” – como aquele indivíduo com idade mental inferior a dois anos. O adjetivo deixa a porta aberta para a inclusão do imbecil, que escapa da idiotia por escassa diferença do padrão mental.
Afora a sua evidente utilidade como correio e como arquivo universal, o que a internet e as suas redes vêm revelando é uma concepção de espaço público como “espelho” tecnologicamente ampliado da vida social. Foi-se embora o velho requisito liberal de natureza ético-política, que inscrevia no “reflexo” da imprensa o horizonte autoeducativo da sociedade, para além da mera repetição técnica do existente.
Daí a crítica filosófica à metáfora do espelho: “Quando alguém se olha no espelho não vê o outro de si mesmo, nem mesmo o outro do outro, mas apenas a si mesmo” (Emmanuel Carneiro Leão). A mera reduplicação de si mesmo é uma circularidade vazia, porque prescinde das mediações necessárias a todo ato de conhecer. É a visão que se tem do puro espetáculo – a lógica do funcionamento midiático até agora – capaz de emocionar sem produzir sentimento ou lucidez sensível.
Desprezo à diversidade
Cada vez mais, existir confunde-se com existir no espelho armado por mercado e tecnologia eletrônica. Embora as cabeças possam estar antenadas com a geografia virtual construída pelas tecnologias, os corpos concretos da maioria desigual ainda se espalham em paisagens urbanas degradadas e carentes de espaço público mediador, com rendimentos cada vez mais reduzidos em função das regressões das condições de trabalho. O corpo humano com suas circunstâncias biológicas e históricas (classe social, etnia etc.) não é sincrônico ao desenvolvimento da máquina onde o sujeito contemporâneo tende a habitar virtualmente.
A tecnologia – a última das utopias do capital – deixa de desenvolver-se como conjunto das técnicas de domínio e uso das inovações para se oferecer às maiorias politicamente apáticas como fonte inesgotável dos gadgets de consumo. Evanescem os valores do socius comum, que tradicionalmente fomentavam os sentimentos de solidariedade e compaixão.
Numa paisagem que se reivindique como radicalmente humana, torna-se esterilizante o pressuposto de uma forma social única sistemicamente regulada por mercado e tecnologia. Uma sociabilidade limitada a esse escopo exclusivo (aquela que norteia as pesquisas sobre consumo cultural, recepção de mídia, opiniões, gosto e atitudes do público, as variadas práticas e efeitos da rede eletrônica etc.) presta-se à reprodução burocrática ou circular da existência, mas deixa de lado o problema central da coesão social, que se situa na esfera consciente e inconsciente do comum.
É viável a hipótese de que essa paisagem seja o pano de fundo para a emersão da imbecilidade larvar na rede eletrônica. Vem calando fundo em setores ainda lúcidos a disseminação de ódio e preconceito acobertados pelo anonimato das manifestações nas redes sociais.
Foram chocantes, por exemplo, as agressões dirigidas à jornalista Miriam Leitão após ter revelado de modo comedido, mas pungente, detalhes de sua tortura durante a ditadura militar. O que deveria ter provocado reações de espanto e indignação deu lugar à sordidez de insultos desapiedados.
Chocante foi igualmente o episódio da jovem negra que publicou no Facebook uma foto ao lado do namorado branco. A enxurrada de ofensas racistas levou o casal a procurar a Delegacia de Crimes Cibernéticos de Belo Horizonte, para tentar pôr cobro à violência moral.
Fora da rede, mas sem dúvida no interior desse mesmo espírito de desprezo para com a diversidade humana, situam-se as agressões racistas a jogadores de futebol, como acaba de acontecer em Porto Alegre.
Tempo integral
Os exemplos se multiplicam, seria inútil enumerá-los aqui. Interessa, sim, confrontar o chamado “discurso de rede” com a pesquisa recente do MTD/CNT, segundo a qual 73,8% dos usuários entrevistados não acreditam na veracidade do que circula nas redes sociais. Nessa esfera de mídia – pois é realmente de mídia nova que se trata – deixa de existir a credibilidade que sustenta o pacto histórico da imprensa tradicional com seus leitores. Mas faz existir uma pergunta inquietante: se tantos não acreditam, por que tantos aderem ou mesmo se viciam no conteúdo das redes?
Não se pode realmente enunciar uma única resposta para o fenômeno, mas é possível começar a pensar a partir da ausência de mediações institucionalizadas na circulação quase incontrolável de notícias, informações gerais, autorretratos, factoides e conversas. Mediar é o que sempre buscou fazer o jornalismo, com acertos e desacertos. Sem isso, cada um convertido em “mídia pessoal”, mas sem compromisso com uma historiografia veraz, converte-se também ao culto narcísico de si mesmo, fonte conhecida de ódio e de agressão ao Outro. Do narcisismo individual, de classe social e de etnia emerge aos poucos um conservadorismo regressivo sem pudor e sem piedade que destila de um “esqueleto” espectral (a rede, movida apenas por valores de acessibilidade e conexão) afetos sem sentimentos, em que não se consegue enxergar “corpo” social.
É o que nos parece estar acontecendo. Esse sujeito complacente com a própria imagem no espelho tecnológico, mas provavelmente de escasso amor próprio, é o paradigma do imbecil de que falava Taine. E agora com uma variável ultramoderna, que é a imersão na rede. Conectado por 24 horas, babando o seu ressentimento sem maiores riscos, o imbecil é feliz em tempo integral.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Como bem sabiamente disse o Professor Miguel Pereira, na conferência "Internet em nossa vidas", na 102k, "Muniz Sodré não repassa ideias, ele cria ideias!!". Fico boba em dizer que tive a honra de entrevistar esse homem, tão doce, em espírito e mente. Maravilhoso texto!!
ResponderExcluirTodos nós somos cercados de ideologias, as quais definimos como lentes para se ver o mundo. As ideologias fazem cada pessoa enxergar de um modo diferente... É horrível ver as barbaridades de comentários que surgiram na foto daquele casal do facebook em que ela é negra e ele, branco. Terrível. Tudo depende do tom com o qual você fala, ou escreve também. Eu tenho uma amiga que me chama carinhosamente de Choco em referência ao chocolate galak e eu não tenho problemas com ela, visto que a chamo de Chokita e ela é negra. Nós nos tratamos bem e sabe de uma coisa? As pessoas não conseguem ENXERGAR(não basta ver) o que há de beleza no outro. O negro foi tido como escravo durante tanto tempo mas eles tem uma pele linda, eu diria até invejável, e muito, MUITO desejável para um lugar como o Rio de Janeiro. Não precisam ficar passando protetor solar de 15 em 15 segundos como eu faço quando vou à praia para não sair igual a um camarão ! Para mim, que gosto de praia e detestp ficar parecendo o gasparzinho de tanto protetor solar que minha vó passa em mim, essa é uma linda e invejável vantagem. Pena que muitos não conseguem ver o melhor no outro. Não basta ver, temos que ENXERGAR. Por isso, existem muitos cegos que enxergam mais do que pessoas normais.
ResponderExcluirNossa, um dia espero escrever um décimo tão bem quanto o Sodré. Belíssimo texto, não há nem muito o que discutir, tudo foi dito brilhantemente bem e de forma extremamente concisa. Tema mais do que atual. Hoje, na era do digital, estamos (nossa geração, e não, não tiro o meu da reta, admito ter um pouco desse imbecil dentro de mim) muito mais preocupados em expormos nossas vidas maravilhosas nas redes sociais do que em olhar realmente o outro, sem filtros, sem superficialidade. No mundo de hoje todos têm a síndrome da estrela. Causar inveja no outro é algo estimado pela maioria. Quase não existem mais trocas. Estamos cada vez mais imersos nessa imparcialidade. Com certeza o número de pessoas jovens com depressão aumentou consideravelmente nos últimos anos, entre outras razões, pelo fato de muitos acharem ser os únicos a terem conflitos e momentos difíceis, pois esse lado nunca é mostrado. Todos aparentam ser as pessoas mais felizes e realizadas do mundo na internet. Ali, não existe tristeza, muito menos decepção, e o problema é que muitas vezes essa vida digital é mais estimada e reconhecida do que a real. Vendemos uma imagem falsa de nós mesmos, diariamente. Estamos cada vez mais imersos nesse mundo de consumo desenfreado em que as pessoas estão cada vez mais frias, insensíveis, e, com toda a certeza, mais imbecis.
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